sábado, 14 de março de 2015

Da Lacailândia lusa, ou a ficção como verdade

Parabéns por um tão raro discurso nesta casa. Tudo isto é ficção, a que se rende realidade.
Ernesto Rodrigues, Passos Perdidos

Vamberto Freitas

Numa das recentes apresentações deste seu romance, de título e significado inevitavelmente polissémicos, Passos Perdidos, Ernesto Rodrigues traçou dois fios condutores da trama ficcional por ele urdida – o diálogo com algumas obras canónicas portuguesas, com Camilo Castelo Branco (A Queda De Um Anjo) e Eça de Queirós (O Primo Basílio) em primeiro plano, e ainda alusões ou citações de alguns outros ficcionistas e poetas, com Camões ao centro e logo nas primeiras páginas através de versos mais do que pertinentes aqui (Os bons vi sempre passar/no mundo graves tormentos), e depois a também inevitável “realidade” política que desde há décadas subverte todo o projecto que foi a Revolução de Abril de 1974, ou melhor dito, todo o liberalismo ou democraticidade que saiu da nossa guerra civil de Oitocentos. Não há qualquer “ansiedade de influência” nestes gestos do autor, mas sim a continuidade que uma grande Tradição literária e discursiva nunca deixa de provocar nas melhores obras de arte que partem de uma mesma língua e/ou geografia de afectos e comunidades imaginárias, e sobretudo de identidades partilhadas. Um escritor sem memória histórica terá muito pouco ou nada a dizer a outros num acto de criação, por mais “artifício” que se lhe reconheça. Palavras cruzadas também requerem algum conhecimento vocabular e noções de cultura geral, mas são de todo vazias e significam absolutamente nada. Alguma ficção pós-modernista, a partir doa nos 70, tinha pouco mais do que o umbigo próprio para descrever ou auto-mortificar-se, a sua comédia raramente passando das patéticas biografias reinventadas e da confusão que é estar-se vivo sem uma ideia de rumo pessoal ou comunitário, ou então fechado no egoísmo de rapazes e raparigas privilegiadas nas sociedades ocidentais. Pouco já os lêem, depois de passados os quinze minutos de fama e estrelato. Aliás, também os anos de suposta ou falsa inocência social do pós-Guerra já passaram, foram implacavelmente desmontados neste últimos tempos, estando de regresso, creio, a arte literária que tem a sociedade como tema, que volta a ser a fonte de beleza e interpretação, de ideias e reflexões, e na qual só se distingue a forma se o conteúdo a merecer. A arte literária é, sempre foi, esse gesto à procura do diálogo, a estética oferecida como afirmação ou sugestão do estado ou da condição humana, vivida e testemunhada num determinado lugar e tempo. “Política e literatura” é o mesmo que dizer “sociedade e literatura”, e em língua portuguesa as obras primas de ficção, a partir do século XIX, a partir precisamente dos dois nomes insistentemente convocados por Ernesto Rodrigues nesta sua obra, Camilo e Eça, estabeleceram as suas temáticas e, até, o seu olhar, quase sempre pela sátira pura, a paródia, a fábula carregada de humanidade.
Esqueçamos a trama de Passos Perdidos – uma tentativa de corrupção legislativa na que ainda chamamos “a casa da democracia” por parte de determinados interesses financeiros – e destaquemos alguns momentos, dizeres e personagens que giram em volta da Assembleia da República e arredores, especialmente políticos, banqueiros e jornalistas, o triângulo de tudo e todos que fazem da vida pública o meio principal de levitação, horizontal quase sempre, aos céus, à glória e ao enriquecimento por “qualquer meio necessário”. Os personagens do romance são poucos,  mas necessariamente todos relacionados por laços secretos e de sangue, de sugas-várias, ou por outras prosmicuidades nas quais a cama é de somenos importância e honradez, na maior parte dos casos. Um autor com a formação académica e intelectual e a obra literária ou de investigação de um Ernesto Rodrigues não podia construir uma narrativa “política” da nossa actualidade que não fosse esta. Para além do referencial muito português atrás referido, digamos que o romance funciona não somente como uma espécie de súmula do muito quanto já foi dito e escrito ao longo de quase toda a nossa história nacional, como ainda partilha afinidades com outros escritores e obras além-fronteiras. Não sendo Passos Perdidos um romance futurista ou sobre o totalitarismo histórico, não deixa de fazer lembrar um George Orwell, particularmente o do já tão clássico como profético 1984 – a corrupção semântica generalizada de um simples vocábulo e ainda mais das linguagens em tudo referentes às sociedades e seus “negócios” resulta da corrupção generalizada de quem tem o poder de fazer, refazer, dizer e redizer as acções de quem governa simplesmente para se governar, o poder pelo poder (freudianamente entendido), a noção de civismo ou de “comunidade” uma qualidade – uma “fábula” – nunca lembrada pelos servidores dos seus patrões, ou pelos trepadores da glória pessoal, sem um mínimo de ética ou pudor. Dir-me-ão que assim sempre foi, e provavelmente sempre será. Responderei que os que constituem bolsas de resistência ao descaramento e comportamento atávico de governantes e outros agentes poderosos das finanças que se escondem por detrás de linguagens, uma vez mais, corrompidas, portanto sem qualquer sentido transmissor da verdade e muito menos do bem comum, tal como se tem tentado defini-lo desde o Iluminismo, serão sempre os escritores, os sucessores dos antigos “cronistas” que adivinhavam o analfabetismo dos seus senhores mandantes para, tantas vezes entre linhas e em metáforas brilhantes, avisarem as gerações vindouras da canalha a quem serviam, e tinham de servir. Nem todos são Velhos do Restelo, e antes fossem no que diz respeito ao sentido de nação ou pátria. A beleza deste género de literatura também reside aí – a confirmação de que a imperfeição humana nunca deixa de ir aos seus extremos, que a riqueza de uns é a opressão e vitimização de todos os outros, e cabe precisamente à arte não esquecer a dialéctica da história em busca de uma síntese racional, que poderíamos ainda redefinir simplesmente como “decência cívica”. A longa epígrafe deste romance vem de a Arte de Furtar,“Dos que furtam com unhas políticas”. Uma sátira política tem as suas regras: o riso é cruel, é “o pisar e repisar da vítima”, como diria entre nós José Martins Garcia. Só que a “vítima” somos nós, os que não lêem juntamente com os que lêem sofisticados romances como este. Atravessamos os Passos Perdidos rumo às sessões plenárias com os que para lá vão, sentam-se sem nada dizer anos fora, alguns os predadores e predadoras profissionais, outros os “borboletas” da moda, hoje em dia em estilo fino e próprio, conforme a vontade Armani e afins, a comédia humana uma encenação que vem de longe, os narradores recorrendo a discursos de séculos passados, nestas páginas comicamente repescados como se originais ou corajosos fossem, as suas generalidades dirigidas a todos e a ninguém. Tal e qual – é só ligarmos o telejornal num dia qualquer.
“Sodomizaram-no?” – pergunta em entrevista uma jornalista ao deputado conservador e  que durante quarenta anos não abrira boca, a propósito de outro colega seu, mas cujas andanças estão em causa. “Ele não sabia – deduz o narrador do momento – o que isso era, pois o vocábulo não frequentava o hemiciclo (ao menos, a horas decentes), não subira à tribuna de honra nem o recordava dos códigos, audições ou debates, logo, não constava do diário das sessões, cujo vocabulário mais terso ele registava em caderninhos azuis de folhas quadrículas, na falta de palavras cruzadas, que se recusaria a buscar na Imprensa profana, com que os colegas adormeciam. Na capa, inscrevera DLP, que julgavam dicionário da língua portuguesa; era, sim, da lábia parlamentar”.
Passos Perdidos é essa narrativa meio clara meio obscura, um jogo de sombras e espelhos entre todos os seus personagens, e muito especialmente uma interpelação sobre o que constitui ou não a nossa identidade, pessoal e colectiva. Quem somos, e que povo somos?  De onde veio esta geração em tempos já pós-modernos e pós-revolucionários, que nos governa e assalta como se nada tivessem aprendido do passado, como se história tivesse sido totalmente apagada, ou pelo menos nunca aprendida? “Corrupção” ainda quer dizer alguma coisa entre nós? Será que os teóricos literários mais radicais têm razão quando falam já numa idade pós-humana, não se referindo, supõe-se, exclusivamente às tecnologias hiper-avançadas que parecem fazer de nós meros instrumentos de quem as detém e mobiliza na luta pela supremacia absoluta? Ernesto Rodrigues já viu e viveu muito mundo para além do país da sua nascença, já muito escreveu sobre história e discurso público, que também dão pelo nome de “jornalismo” e “política”. Este seu romance é uma outra transfiguração de todos esses saberes e percursos, os nossos próprios dias projectados em literatura, que é sempre o testemunho mais duradouro e, sim, verdadeiro.
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Ernesto Rodrigues, Passos Perdidos, Âncora Editora, Lisboa, 2014.

[Açoriano Oriental, 13-III-2015.]

domingo, 1 de março de 2015

Política, Finança, Jornalismo

Retomando prática em que terei sido pioneiro ‒ ser o autor a falar da sua obra, que deve conhecer minimamente ‒, apresento, agora, o meu quinto romance, Passos Perdidos (na Âncora Editora, sob comando de um prático experimentado, António Baptista Lopes), agradecendo a generosidade de espaço mais do que centenário a que retorno, e rogando um olhar sereno dos leitores e eleitores que me ouvem, ou lêem, sobre um ano decisivo nas nossas vidas. A democracia definha; o Estado de direito é subvertido por serviços secretos ‒ que reconhecem as ilegalidades em que incorrem. Serei breve, para dar azo a debate que gostava seguisse estas palavras, dedicadas a Amigo que o sofrimento retém em casa: Amadeu Ferreira.
Quando três personagens sobem a escadaria da Assembleia da República, vencem o detector de metais e caem no salão-corredor exibindo seis painéis a óleo sobre tela de Columbano que retratam 22 heróis pátrios desde o século XIII, não podemos deixar de pensar, também, que os designados Passos Perdidos são uma imagem acusadora dos últimos dois séculos (desde 1821), em que o desleixo dos eleitos está longe de rivalizar com «os visionários D. Henrique e filho Afonso», e com aquele pequeno milhão de Quatrocentos, que deu novos mundos ao mundo. Eis o cerne do problema, qual chaga aberta no Portugal contemporâneo ‒ eleitos e sistema eleitoral, sobre que tanto se fala, sem proveito, e que o voto soberano não deveria caucionar.
Duzentos e trinta deputados, ah!, se magníficos, seria música de esferas, senão puro maná; mas nem um filme sobre 12 magníficos faríamos, o que leva a perguntar da desrazão de alimentar sujeitos além dos 180, como prevê a Constituição. Já agora, esta, que começou a ser redigida há 40 anos, pode ser facilmente depurada.
Várias soluções estão previstas no diálogo entre dois estagiários de 24 anos, que representam a posição da juventude face à partidocracia. Desde a epígrafe, tirada da Arte de Furtar, alerta-se para amálgama entre Política e Razão de Estado, ambas reduzidas aos interesses mesquinhos de sujeitos privilegiados, e sem elevação, que se eternizam.
Conviria, diz a jornalista estagiária ‒ não somos todos estagiários da vida? ‒, «abrir os partidos à sociedade, a candidaturas independentes, como nas autárquicas, antes que a sociedade os encerre em si mesmos». Não desejo o fim dos partidos; estes é que, sem a qualidade exigível, não podem ser senhores de um destino colectivo. Mais: votando em partido, e em círculo nacional, devemos poder votar num candidato da nossa preferência, e não forçados a eleger os que são postos à boca do tacho, seja, nos primeiros lugares da lista. Entendo que a eleição uninominal só aterroriza inseguros, autocratas, que não merecem a confiança do eleitorado.
Argumenta-se que reduzir a Assembleia a 180 significa, além de demagogia (como, se está previsto na Constituição?), ferir a proporcionalidade e reduzir a nada regiões do interior. Ora, a regra histórica é a desproporcionalidade, que só muda no grau ‒ e já nem falo de troikas e comissários europeus não-eleitos, que governam as nossas vidas. Entretanto, acautelem presença digna das regiões, começando por abolir a disposição constitucional que proíbe partidos regionais. Por que razão um partido do Chiado, alegadamente nacional, há-de disputar percentagens vergonhosas, e não se admitir uma força declaradamente regional?
Na Lírica de João Mínimo, há um poema, datado de Coimbra, Dezembro de 1820 ‒ em vésperas de entrarmos no regime demo-parlamentar que nos governa ‒, em que Almeida Garrett, aludindo aos deputados, os avisa de que os olhos do mundo e dos portugueses estão sobre eles e que devem tremer do julgamento que prestaram: «tremei; que um Deus ouviu, que ouviu a patria, / Que os seculos vindouros vos aguardam; / E no recto provir, ou gloria, ou mancha, / Com sêllo eterno vos espera a fama.» O século XIX, todavia, vai rir-se de eleitos que não eram melhores que os de hoje. Lembro um candidato madeirense à «dobadoura parlamentar», que já projectava lei, cujo artigo primeiro permitia «a todo o belleguim eleitural o poder mamar na vacca do estado, sem pagar direitos de mercê, nem contribuição alguma».
O deputado dividia-se, então, em janota e pé-de-boi. Aquele, jovem e vestindo à parisiense, luneta, «tem ordinariamente desde a edade legal até aos quarenta annos». Tenho um assim, sem luneta, mas sexy. Prima por chegar tarde, sentar-se, vaguear pela sala, cumprimentar repetidas vezes, complacente para as galerias. O janota representa-se «ordinariamente a si e à sua toilette». No seu «borboletismo», vai de partido em partido: «Os maldizentes chamam a isso falta de carácter, elasticidade de consciência, frouxidão política, moléstia de S. Bento, etc.»
O segundo, respeitável, «verdadeiro pae da pátria», parece mais velho do que esta, é um pé-de-boi, gebo parlamentar, calva semicircular ou chinó. Move-se entre «dois colarinhos monumentaes», usa «colete de rebuço descommunal», grave, sossegado, roncando, se dorme, e, acordado, prefere ‘ordem’, enquanto a janotagem grita ‘apoiado’. «O deputado pé de boi representa o seu voto.» Mas essa de ‘pai de pátria’ intrigava um tal Silva Costa, que cito da Gazeta Literária (1867): «Dizem que o deputado é um pae da pátria… ora tendo a pátria tantos paes, dá uma ideia pouco favorável da virtude de sua mãe. Isto é lógico. Que um pae tenha muitas filhas, é natural, comprehende-se: mas que uma filha tenha muitos paes… não há explicação possível… sem offender a moral.» Quanto a essa imagem, dou outros exemplos­ de Latino Coelho a Ramalho, de Eça a Teixeira de Queirós ‒ na minha edição de A Queda Dum Anjo, que começou a sair em folhetim há 150 anos, e foi primeira inspiração…
Há outro aspecto, gravoso: a promiscuidade entre finança e política, que desencadeia a acção do romance. Com efeito, um banco de investimento quer vender projecto de lei a deputado democrata-cristão há 40 anos sem intervenção no plenário da Assembleia da República. Nunca saberemos que projecto de lei é esse, porque o fundamental está alhures, para não dizer além da lei. Como se chega ao desplante de invadir a Casa da Democracia com intenções viscosas? E justificar esse silêncio de túmulo, vivido, afinal, entre chantagem de colega deputada e lembrança de amor único, talvez perdido?
Neste universo de sambenitos, figuras secundárias tornam-se mais importantes do que julgaríamos, e talvez esse deputado não seja tão estúpido como ressalta da enunciação de um jovem narrador, perdido em custoso amadurecimento, fruto de família desagregada. Mas é a vingança que tudo move, apoiada em razão antiga ou recente, e confunde deputada da oposição, não sem vitimar esse eleito janota, mais calhado para passerelles de moda. Desvela-se a morte parlamentar de extrema-esquerda inconsequente (gostaria de me enganar, e que a esquerda estivesse menos fragmentada), mas também sai criticado um partido nem carne nem peixe... Certo é que os partidos não olham para dentro de si mesmos, nem percebem que o povo não é parvo ‒ com a diferença de que tem menos benesses e se revoltará, um dia. Perguntada se vota, responde a jornalista:
«‒ Nestas múmias?
‒ Não me lembre o Museu Britânico...
‒ Deixem-me rir… Quem os conhece? Para os anos que exercem, e matérias tão sensíveis, onde é que estudaram? Ou só eles é que não precisam de estudar? Trocava lá a praia por indivíduos que não inspiram confiança…
‒ …Que, se pudessem, comiam-na viva, qual lagosta das águas territoriais portuguesas.
‒ Lá isso, acredito. Quando posso, vou aos museus.
‒ Como eu. ‒ Enfim: também sou pouco de museus. ‒ E se fosse obrigatório?
‒ Votar? Sem alterações de fundo, nas atitudes e nas escolhas? Sem saber donde lhes vem o dinheiro, quando deviam ser modelos de transparência? Porque seria melhor a ditadura dos partidos, que se encostam ao próprio interesse?»
A abstenção é já um aviso. 
Discursos inócuos ou repetitivos reflectem outros tantos passos perdidos que a Constituição e legislaturas fracas não transformaram. Aproveito para inscrever em ficção uma das pérolas dos anais parlamentares, lançada por senhora que conheci na juventude: «O meu medo é o do inconseguimento… o inconseguimento de eu estar num centro de decisão fundamental a que possa corresponder uma espécie de nível social frustracional derivado da crise.»
Se a glosa do camiliano A Queda Dum Anjo é evidente, será menos o único e longo discurso de João Félix Filostrato, adaptado de outro, do futuro chefe progressista José Luciano de Castro, em 1865. Ou seja: as boas intenções deslizando da tribuna parlamentar ficam sempre em águas de bacalhau. E, claro, não podemos continuar nisto. Reflexão sobre a democracia em semana pascal ‒ seja, entre os próximos dias 1 e 9 de Abril ‒, esta fábula política é, todavia, salva, no final, por um bem enredado discurso amoroso. O que São Bento tem de chorrilho e lábia inútil, tem a saudade amorosa de recato e grata consequência. E, sendo estagiários da vida, resta-nos gozar a felicidade…
Gostava de assinalar outros pormenores da vida nacional que não ficam nas entrelinhas: a acção deletéria dos meios de comunicação (em particular, da televisão), quando podiam ser escola de virtude, de esclarecimento, de humilde busca da verdade, sempre fugidia; a excessiva opinião que os inunda, encabeçada pelos filósofos da bola em sua língua de trapos; a trivialidade de figurinos e figurões, heróis do efémero (que substituirão, um dia, os painéis de Columbano), face aos quais, além da democracia e do Estado de direito, também o país-nação definha.

Num misto de corrosivo social e relações oblíquas, entre logros e acentos policiários, julgo que se lê com prazer este romance-divertimento, embora sério nas questões elencadas e na lição moral que dele se evola. Desejo que as frentes política, financeira e jornalística não distraiam das decisivas (para bem e para mal) relações familiares em jogo, que tudo determinam, ora mostrando a mesquinhez da inveja, ora pacificando insofridos corações, em final feliz; enfim, quem me dera fosse degustado ‒ na ironia, na sugestão, em cada um dos vocábulos longamente estudados ‒, fosse saboreado, dizia, o ritmo que imprimi a este, não raro evanescente, não raro cru, monumento verbal. A par de ingredientes da velha escola folhetinesca ‒ origens enigmáticas de filhos entregues à roda, irmãs gémeas, formas de reconhecimento, amor omnia vincit ‒, estas páginas querem-se interventivas, sim, na chaga aberta do nosso sistema político; acima de tudo, porém, é meu sonho que elas sobrevivam no voto que me orienta, seja, enquanto consciência da literatura. Está aberto o debate. 

[Apresentação, pelo autor, de Passos Perdidos, no dia 25 de Fevereiro, na Livraria Ferin, Lisboa.]